Meirielli Escobar
Domingo, dia 10 de agosto, o Fantástico apresentou uma matéria intrigante, mas não surpreendente, sobre violência contra os profissionais da saúde, trazendo o dado perturbador de que 8 em cada 10 profissionais de saúde no Brasil reclamam ter sofrido alguma agressão no trabalho. Nessa reportagem, são apresentados alguns dados relevantes das causas que levam a essa violência, entre elas algumas já apareciam em pesquisas há 10 anos “que os médicos não ouvem”; “não olham na cara”; “são mal-educados”.
Evidentemente, que isso pode aparecer em consultas particulares, porém são ínfimos os dados, perto das instituições públicas – incluindo convênios-, onde as reclamações ocorrem largamente. Questionado sobre essas reclamações, o presidente do Conselho Regional de Medicina de São Paulo- Ângelo Vattimo- conotou as reclamações como questões “subjetivas”, mas que o médico tem de ter “uma empatia mínima”.
Assistindo à reportagem e pensando nas minhas próprias experiências, lembrei-me da frase do poeta Bertolt Brecht “do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem” Achei por bem analisar o outro lado da questão, para isso, faz-se necessária a narração de uma experiência pessoal.
Há poucos dias, procurei um especialista, para pedir a investigação de um problema que começou no braço e que, aparentemente, pode estar relacionado a outros, como: mão, coluna e joelho. Orientada por fisioterapeuta, lá fui eu, com dores e na esperança de obter alguma resposta. Ao sentar-me à frente do profissional, ele perguntou-me o que havia, fiz um brevíssimo relato e solicitei-lhe exames, para uma investigação mais aprofundada.
Ele olhou alguns exames que havia levado e me perguntou o que eu havia feito no braço para “chegar naquilo” – naquilo é uma bursite e tendinite- naquele instante começou uma situação tensa, pois eu não estava entendendo o que o “médico” estava perguntando ou querendo dizer, mas passou, respondi apenas “dou aulas, só ontem, foram 10”.
Naquele instante, ele se virou para o computador, tão obsoleto quanto ele, e ali ficou alguns minutos olhando para a tela, escrevia, apagava, escrevia, apagava, num silêncio constrangedor. Eu pensando se deveria tirar minhas dúvidas ou continuar calada; optei pela segunda opção, já que o ambiente não era amistoso. De repente, ele me pergunta: “qual coluna dói?”. Novamente sem entender a pergunta, pensando, leigamente, que houvesse uma só coluna devolvi a pergunta: “o senhor pode reformular a pergunta? Não entendi”. Ali começou uma violência, sorrateira e que foi se escalando.
Ele já irritado, sem causa aparente, disse abrutalhado “que parte da coluna dói?”. Então eu emendei “ela toda”. Ele em seguida, o joelho também dói? De qual você quer avaliação? Eu respondi: “dói o esquerdo”.
Neste momento, num rompante sem causa ele pega o pedido e diz: “vou pedir os exames, mas não vou analisar, você vai levar pra (sic) outro médico, porque aqui não é cardápio de restaurante para você pedir o que quer, você precisa perder “esse seu jeito!”. Sem entender, mas com muita dignidade, disse que ele não se desse o trabalho de continuar, dei-lhe os adjetivos cabíveis e saí da sala.
Fiquei 2 dias digerindo esse “você precisa perder esse seu jeito” e fiquei a pensar que ele não fez anamnese, não me proporcionou espaço para escuta, não sabia quem eu era, de onde vinha, minha história, mas se achou no direito de questionar “o meu jeito” e pior, sem dar adjetivos claros do que significava “meu jeito”, ordenou que eu mudasse.
Na hora, saí da consulta enraivecida pensando sobre a incapacidade daquele médico fazer o básico e, claro, da dificuldade dele em verbalizar, dialogar. Não digo acolher, isso é para poucos e nem se exige isso, mas a incapacidade de ser profissional e de achar adjetivos para me qualificar, coisa básica da Língua Portuguesa. Desconfiei até que, ao rasgar o pedido de exames, quando interrompi a violência escalada, ele estivesse encobrindo algum erro de grafia. Era o mínimo a se pensar, depois de momentos de escreve e apaga no computador e da inabilidade com caneta.
Contudo, depois, já refeita do absurdo, fiquei a pensar duas coisas, a primeira é que fui vítima de um patriarcalismo cafona, para dizer o mínimo. “Mudar esse seu jeito”; jeito de quem pede o que precisa, jeito de quem se posiciona diante de perguntas imbecis, jeito de quem percebe estar diante de um profissional malformado? Ou jeito de ser mulher? Porque duvido que ele teria dito o mesmo a um homem.
Poderia dizer que é em razão da idade do profissional que por ser de idade, não percebeu que os tempos mudaram, é uma justificativa do senso comum “ele é um homem de outro tempo”, mas eu estaria sendo tão preconceituosa quanto ele. O que houve ali, foi, a partir de Pierre Bourdieu, uma violência simbólica; uma forma de poder que opera através de mecanismos culturais e sociais, naturalizando relações de dominação e desigualdade. O “médico” não notou que os tempos mudaram e que as mulheres têm “jeitos” variados, vota, exige seus direitos, trabalha e, sobretudo: pensa. Isso é muito perigoso para homens anacrônicos.
A segunda reflexão que me veio, foi sobre o meu fazer em sala de aula, a minha luta de 26 anos, ensinando adolescentes, em fase de vestibular, muitos deles sonhando com a carreira de “medicina”, que merece toda minha deferência. São incontáveis os profissionais respeitosos, éticos e empáticos que encontrei, mas sempre há os execráveis. Esses passam, infelizmente, pela faculdade de medicina sem o principal: senso de humanização, mas são os únicos profissionais, infelizmente, que o mercado não corrige. A lógica da seleção natural não serve para alguns médicos, sobretudo no Sistema Único de Saúde e em determinados convênios. Se o exemplo dado aqui, foi comigo, uma pessoa esclarecida, imagino o que deva acontecer com as pessoas humildes e sem voz, que vão em busca de socorro. É a lógica do ferro corroendo a ferrugem, como diria João Cabral de Melo Neto.
Meu sonho não é utopia e, todo dia, ao entrar em uma sala de aula, escolho cada palavra, para me comunicar melhor no mundo e com o mundo e o que eu quero com isso? Que ao menos os alunos entendam a importância da humanização em qualquer área, sobretudo na medicina.
Espero que o senhor Ângelo Vattimo reveja apenas duas palavras de sua entrevista ao Fantástico “empatia mínima”, pois empatia não se pode quantificar em escala, não tem mínima, nem máxima, assim como a dor. Dor é dor e empatia é empatia.
Passou da hora de as Faculdades de Medicina darem atenção a disciplinas que visem à comunicação e expressão e à humanização na interação entre médico e paciente. Na educação, tentamos conduzir as relações pelo diálogo, tendo em mente que nele, nós, os professores, somos os adultos da relação. Numa interação médico paciente, quem precisa adaptar sua linguagem ou se fazer entender?
Enquanto houver médicos que satirizem o paciente porque ele diz “peleumonia” como aconteceu em Serra Negra em 2016 ou se irritem porque o paciente não sabe que existem “várias colunas” estaremos fadados à violência de toda sorte.

Meirielli Escobar é Bacharel em Direito, Mestra em Literatura e Ensino, atua há 26 anos como professora de Gramática e Redação com foco em Enem, Vestibulares e Enade.