'Jantar no escuro': sentidos à mesa e olhos de folga durante experiência gastronômica inusitada em Bauru

O que os olhos não veem, a boca, o olfato, a audição e até a imaginação dão conta de sentir. Foi com essa proposta que o g1 acompanhou uma experiência gastronômica inusitada no Sesc, em Bauru (SP): um jantar onde a única coisa que não entra no cardápio é a visão.

A iniciativa é do Ateliê no Escuro, em parceria com o Chef Aprendiz, projeto que trabalha a formação de jovens em situação de vulnerabilidade e que, desta vez, levou para o salão uma combinação de gastronomia, sensações e imersão narrativa.

A experiência consiste em vendar e guiar o público por um jantar multissensorial, onde a visão fica de lado, e tato, olfato, audição e paladar deixam de ser coadjuvantes.

É como se, por duas horas, o mundo visual fosse desligado para que tudo o que normalmente passa despercebido – o som, o aroma dos ingredientes, a textura do alimento-, ganhe destaque.

🍽️ Escuridão, vulnerabilidade e… chuva no salão? 🌧️

A noite começa ainda com luz, mas a tensão já aparece na fila. Alguns participantes fazem piadas nervosas, outros apertam o braço do acompanhante, e há quem teste a venda antes da hora oficial.

Quando finalmente somos vendados e levados ao salão, um silêncio rapidamente toma conta do ambiente, mas ele dura apenas alguns segundos. Logo surgem os primeiros estímulos: sons de chuva, vento, água pingando, folhas se mexendo, animais distantes e até alguns acordes de “Trem Azul”, do saudoso Lô Borges, compõe a trilha dessa viagem gastronômica.

Muitos desses sons não são de “verdade”, mas para quem está vendado, a audição assume controle e cria a paisagem ao redor. A equipe chama isso de “paisagem sonora”; alguns participantes, ao final, descrevem como “teletransporte”.

“Eu senti que uma hora eu tava no meio da floresta, outra hora parecia que eu tava vendo quadros. Não sei explicar, mas vi muita coisa diferente porque eu consegui me concentrar bastante e aproveitar”, comenta Murilo Sardinha, um dos participantes da experiência.

A organizadora Roberta Leccese explica que tudo é pensado para que a vulnerabilidade inicial, já que todos estão vendados e “sem o controle”, se transforme em conforto ao longo do jantar.

“A primeira sensação dos convidados é sempre de tensão, porque a visão domina nossa vida. Mas durante o jantar, as pessoas relaxam, se sentem cuidadas e conseguem aproveitar os outros sentidos”, diz.

Há também elementos que reforçam o cuidado: vozes tranquilas dos orientadores, música ao vivo, instruções precisas e até uma massagem relaxante entre um prato e outro. Aqui, o sensorial não é apenas sobre comida, é sobre corpo inteiro.

O menu 👨🏾‍🍳

Antes mesmo de chegar à mesa, os convidados são avisados de que nada ali é exatamente o que parece.

O jantar é composto por um menu de seis etapas, cuidadosamente elaborado para brincar com a expectativa do público.

Entre contrastes de temperatura, texturas inesperadas e ingredientes pouco óbvios, cada prato funciona como um convite à descoberta, daqueles que revelam muito mais quando não podem ser vistos. (Veja o cardápio abaixo).

“Quando a gente pensa num cardápio pra esse tipo de evento, pensamos em textura, temperatura, essas brincadeiras de uma coisa quente, uma coisa fria, uma coisa mais macia, uma coisa mais crocante. A junção disso vem pra aguçar a imaginação das pessoas, pra elas tentarem adivinhar o que é, mas sempre trazendo coisas inusitadas também, que normalmente as pessoas torceriam o nariz se fosse pra escolher”, diz o chef de cozinha responsável pelo banquete, Guilherme Cardadeiro.

🥙 Entradas

1. Duo de Brusquetas com Caponata

  • Tradicional: berinjela, pimentão, abobrinha
  • Versão do evento: cascas de banana, passas, castanhas e pesto de manjericão

Impressão

Desde o início ficou claro para mim que se tratava de uma torradinha – o crocante não deixa enganar. Já o cheiro, era suave demais para entregar algo óbvio. Arrisquei: azeitona. Não passou nem perto, era casca de banana. A noite começou com um “golpe gastronômico”.

2. Kebab

  • Tradicional: carne moída de cordeiro
  • Versão do evento: proteína de ervilha com especiarias sírias e molho de iogurte

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A textura me traiu: jurei que era carne. O tempero sírio também me enganou com sucesso. Se o olho come primeiro, a venda provou que o paladar também mente.

🍝 Pratos principais

3. Crudo de Peixe com Frutas da Mata Atlântica

  • Peixe: pintado (peixe de rio)
  • Complementos: frutas da Mata Atlântica (cambuci, amoras), pimenta cambuci, flores e crocante de tapioca

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Sabia que era algo cru – o frescor denunciava isso -, mas errei todo o resto. O crocante da tapioca foi a única pista real. O resto foi chute no escuro, literalmente. O destaque no prato ficou para o jogo de texturas e mistura de sabores ácidos e doces.

4. Tamal com Ragu de Paleta Suína

  • Ragu: paleta suína com especiarias e coentro
  • Inspiração: parente da pamonha

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Um prato mais encorpado, misturando sabores intensos com o frescor do coentro. A consistência e o sabor fizeram soar o alerta de milho verde. Com a cremosidade do ragu, arrisquei uma ‘pamonha com carne’. Acertei metade, o suficiente para me sentir vitorioso por alguns segundos.

Enquanto os convidados também tentam adivinhar o que estão comendo, percebem que a refeição envolve muito mais do que sabores.

“Teve um momento que eles passaram lavanda na gente, então sentimos o cheiro. A gente comeu com os dedos, então a gente estava no tato também, tentando descobrir o que era, sentindo o cheiro, sentindo o sabor. Foi bem legal explorar os outros sentidos”, diz Fernanda Lazzari, outra participante do jantar.

🍰 Sobremesas

5. Trio de Brigadeiros Inusitados

Sabores: milho com cachaça; capim-cidreira; tucupi com farinha d’água

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O capim-cidreira venceu pelo aroma natural. Já a versão de tucupi parecia queijo no formato errado, já que o tucupi traz um sabor umami, quase salgado, algo como um parmesão. O paladar ficou confuso, mas feliz. Afinal, brigadeiro é brigadeiro.

6. Trio de Trufas

Sabores: inhame com cacau 100% e amendoim

Impressão:

Alternativa mais leve, quase um “brownie fit”. A textura do inhame disfarçada de sobremesa foi surpreendente. O cacau forte confundiu ainda mais.

🍸 ‘Drinks’ da noite

  • Ginger Ale: bebida à base de gengibre concentrado com mel, gaseificada com água com gás
  • Suco de Laranja com Gelo de Beterraba e Cenoura: sabor de salada líquida, refrescante
  • Cold Brew (café coado a frio): servido com cítricos desidratados para complementar as sobremesas

Inspiração internacional

O formato do Ateliê no Escuro se inspira em iniciativas conhecidas no exterior, como o projeto alemão “Diálogo no Escuro”, que guia visitantes por ambientes totalmente escuros com condução de pessoas com deficiência visual.

Da mesma ideia surgiu o restaurante francês Dan Lenoir, especializado em refeições na completa escuridão.

Em Bauru, o modelo ganhou um novo propósito: não reproduzir a deficiência visual, mas despertar a percepção sobre como os sentidos se reorganizam quando a visão deixa de liderar.

“Não estamos aqui para reproduzir ou representar o cotidiano de quem vive sem enxergar. A ideia é, simplesmente, tirar o protagonismo da visão para que as pessoas percebam a potência dos outros sentidos”, conta a organizadora.

Apagar a luz para acender os sentidos 💡

Ao final da noite, o salão volta a se iluminar lentamente. Entre risadas e surpresas, os convidados comparam palpites, tentam reconhecer sabores e reconstroem mentalmente o que viveram. Agora com luz, mas ainda sob o impacto da experiência.

“Eu achei a experiência bastante imersiva. Os sons, as sensações físicas… a gente entrou dentro de um sistema inteiro. E o paladar complementava tudo”, comenta Beatriz Alvarez, após participar da experiência.

A sensação comum é de que a comida ganha outro significado quando não pode ser vista, e que o corpo, quando perde seu “GPS visual”, descobre caminhos sensoriais que estavam adormecidos. Às vezes, é preciso apagar a luz para acender os sentidos.

 


Fonte Original: G1 Bauru e Marília

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